Corrupção no Sistema de Saúde

Corrupção no Sistema de Saúde

A pandemia nos trouxe muitas preocupações, mas também novos hábitos positivos­, tanto no âmbito individual como no social e dos negócios. Passamos a investir em maiores cuidados com a saúde, dar mais importância às recomendações dos especialistas quanto à uma rotina com mais exercícios físicos, alimentação saudável e atenção à saúde mental. A sociedade como um todo passou a controlar e se disciplinar para adoção de rituais de higiene adicionais, ao entrar e sair de ambientes coletivos e até mesmo intensificando a limpeza da casa, mantendo os sapatos para fora, um comportamento milenar da cultura japonesa, que agora se justifica globalmente.

No âmbito empresarial, passamos a atender rigorosamente a novos controles de fiscalização, revendo processos de produção e prestação de serviços, seguindo as recomendações mais restritas dos órgãos de vigilância sanitária e de saúde. Também passamos a olhar mais para as oportunidades de melhoria de códigos e práticas internas, de forma não apenas a superar a crise, mas buscando oportunidades de crescimento que surgiram com ela, como o aumento da demanda por serviços eficientes de entrega.

Apesar da dificuldade de olharmos positivamente para assuntos relacionados à corrupção, ficou evidente que a crise e a escassez de recursos provenientes dela, possibilitou um olhar mais profundo e menos tolerante por parte da sociedade sobre os impactos da corrupção, que em nosso caso, tem sido parte da cultura, ao longo de séculos, permeando diversas áreas, e de forma fatal agora, a área da saúde pública.

Sabemos que a corrupção afeta há anos a capacidade dos governos de honrar com seus deveres públicos e básicos de saúde, educação e segurança. No setor da saúde, especificamente, as consequências da corrupção endêmica no país ao longo de uma pandemia têm sido devastadoras. Dados de uma pesquisa realizada por professores da FGV, mostram a relação entre recursos desviados e leitos/equipamentos que deixam de ser instalados ano após ano, para acompanhar o crescimento da demanda por serviços de saúde públicos, e como isso se traduz no aumento da taxa de mortalidade em hospitais[1].

E foi exatamente o que vimos principalmente no auge da pandemia, quando pessoas estavam vindo a óbito por não terem acesso a respiradores, sendo que mesmo em hospitais particulares houve problemas.

Diante deste quadro e do número sem precedentes de vidas perdidas nos últimos 2 anos, fica evidente para a sociedade e gestores dos setores público e privado, que a corrupção afeta de modo ainda mais cruel o setor da saúde. Naturalmente cercado por incertezas, já que não é possível determinar de antemão quem vai ficar doente ou quando ou qual tipo de tratamento será mais necessário ou se que tratamento será mais eficaz, a cadeia de serviços na saúde precisa funcionar de forma orquestrada entre governo, planos e sistemas de saúde, hospitais, farmácias, pacientes e, no caso específico do Brasil, em planejamento constante com o SUS (Sistema Único de Saúde), o que torna a estrutura administrativa necessária bastante complexa, com demandas distintas por conhecimentos de controle, operação e gestão.

Por se tratar de um ecossistema de difícil controle, o setor da saúde é terreno fértil para o surgimento de verdadeiras quadrilhas responsáveis pelos desvios de dinheiro, como foi o caso da “máfia das sanguessugas” que se beneficiava do dinheiro público destinado à compra de ambulâncias.

Segundo levantamentos do TCU, somente entre 2002 e 2015, R$ 4.555.960.367,85 bilhões foram desviados do SUS. Ainda, a área da saúde, sozinha, corresponde a 29% dos recursos federais desviados e, com isso, a União perdeu R$ 15,9 bilhões apenas em desvios[2]. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, que enfrentou um escândalo de corrupção referente aos hospitais de campanha instalados durante a pandemia, e que culminou com o impeachment do governador Wilson Witzel, diversos esquemas e fraudes foram responsáveis pelo desvio de cerca de R$ 1,8 bilhão dos cofres públicos entre 2007 e 2020. Esse valor é maior do que o governo do Rio de Janeiro já havia gastado com a pandemia até setembro de 2020, sendo que, desse valor gasto, aproximadamente R$ 700 milhões ainda estão sob suspeita de desvio[3].

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Operações realizadas para apurar os desvios no sistema de saúde do Rio de Janeiro

Operação Ressonância (2018)[4]: investigou o desvio de R$ 1 bilhão

A Operação Ressonância foi responsável por investigar fraudes em cerca de 10 pregões realizados pelo INTO (Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia), entre 2007 e 2016. Nas contratações foi identificada a atuação do “clube do pregão internacional”, que era um cartel formado por 35 empresas fornecedoras de equipamentos de saúde e que atuou por mais de 20 anos no INTO. O esquema contava com a participação de Sérgio Cortês, então Secretário da Saúde, e outros funcionários públicos que agiam de forma coordenada em benefício das empresas integrantes do esquema.

No caso desse esquema, bem como de outros, é difícil rastrear os responsáveis e os recursos envolvidos porque, muitas vezes, parcerias são firmadas com empresários que conseguem se manter fora do radar, através de esquemas com laranjas e quadrilhas experientes. Além disso, ocorre também a corrupção pelas Organizações Sociais, que prosperou durante o governo de Wilson Witzel e, dessas Organizações Sociais – também chamadas de “OSs” – cinco alimentaram a “caixa da propina”, que desviou R$ 50 milhões em apenas seis meses.

Operação SOS (2018)[5]: investigou o desvio de R$ 74 milhões

A Operação SOS foi responsável por investigar uma Organização Social, a Pró-Saúde, que administrou vários hospitais do Rio de Janeiro, como os hospitais Getúlio Vargas, Albert Schweitzer, Adão Pereira Nunes e Alberto Torres. Essa OS foi utilizada como instrumento para desviar recursos públicos da saúde durante o governo do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, em 2018. Tanto o então Secretário da Saúde, Sérgio Cortês, quanto os empresários envolvidos Miguel Iskin e Gustavo Estellita foram presos.

Miguel Iskin era responsável por influenciar no orçamento e na liberação de recursos pela Secretaria da Saúde e, também, nas contratações pela Pró-Saúde, indicando empresas e fornecendo a documentação necessária, como cotações de preços e propostas fraudadas. Como compensação, ele cobrava a devolução de 10% sobre o valor dos contratos dos fornecedores da organização social, distribuídos entre os demais membros da organização criminosa, como Cortês e Estellita.

Operação Fatura Exposta (2017)[6]: investigou o desvio de R$ 16,2 milhões

Já quanto à Operação Fatura Exposta, o esquema por meio das Organizações Sociais permaneceu o mesmo, apenas o que mudou foi a figura principal: no lugar de Miguel Iskin como “chefão”, entrou Mário Peixoto. E, após a saída de Sérgio Cortês da Secretaria da Saúde, seus sucessores Luiz Antônio Teixeira Júnior e Felipe Peixoto continuaram com os esquemas e igualmente receberam propinas.

Outras operações realizadas:

  • Operação Favorito (2020)[7]: investigou o desvio de R$ 647,1 milhões;
  • Operação Dardanários (2020)[8]: investigou o desvio de R$ 12 milhões;
  • Operação Tris in Idem (2020)[9]: investigou o desvio de R$ 50 milhões.

Essas seis operações juntas foram responsáveis por apurar o desvio de R$ 1,8 bilhão.

Fonte: G1

Sobre o SUS

O SUS (Sistema Único de Saúde) tem como fonte de inspiração o modelo do NHS (National Health Service) britânico e prevê, também, cobertura universal, porém não oferece plano de carreira e, durante a pandemia, vários profissionais de saúde que se infectaram precisaram ficar em quarentena sem serem substituídos, resultando em uma dificuldade ainda maior no atendimento. Contudo, ainda que seja dever do Estado financiar o SUS, esse financiamento acaba sendo insuficiente para atender a toda a demanda necessária, sendo que, segundo relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) de 2019 o Brasil está entre os últimos do grupo de países desenvolvidos ou emergentes em investimentos em saúde, com gasto per capita 30% abaixo da média e com esse gasto representando 4% do PIB[10].

E quais as consequências?

Indiretamente, o Estado brasileiro tem financiado clínicas privadas por meio de deduções fiscais no Imposto de Renda concedidos a pessoas que podem pagar por um plano privado e cada vez mais a população tem buscado por um plano privado de saúde: segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o número de beneficiários de planos de saúde bateu recorde desde 2016, com 48,4 milhões de usuários. Essa alta se deu majoritariamente nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, que foi responsável pelo maior crescimento em números absolutos. Ainda assim, 70% da população no Brasil depende exclusivamente do SUS, enquanto que a taxa de recuperação dos pacientes de Covid-19 é 50% maior em pacientes hospitalizados no setor privado[11].

E, assim como ocorre a corrupção no setor público, ocorre também no setor privado. Um exemplo disso é a Operação Select, que foi responsável pela investigação de uma empresa que não era do ramo de insumos médicos e que firmou contratos com prefeituras da Paraíba para fornecer testes rápidos. Depois, um preço de 89% sobre o valor contratado era aplicado, o que causava um prejuízo de R$2,8 milhões aos cofres públicos[12].

Conclusão

Segundo artigos anteriores da autora, é vital e urgente o investimento em accountability e compliance para o setor da saúde, a fim de garantir maior transparência às empresas e ao ecossistema que poderiam oferecer mais eficiência e capacidade de atendimento à população. Os investimentos nesta área ainda são escassos mesmo que se tornem pífios quando comparados ao potencial de economia proveniente da redução dos desvios financeiros e propinas que oneram e sabotam o sistema. Em se tratando de sistemas de saúde vemos o quanto é comum que esses sistemas não contem com essas ferramentas, o que, sem dúvida, facilita e muito que a corrupção seja tão recorrente e impune nessa área[13]. Contudo, também é importante dizer que a corrupção no sistema de saúde já se dá a partir do indivíduo que finge estar doente para pegar atestado médico e não ir trabalhar. Não é preciso dizer o quanto esse comportamento contribui para a escassez de recursos, fazendo com que pessoas realmente doentes deixem de ser atendias ou que, por exemplo, tenham que esperar mais tempo em uma emergência, colocando vidas em risco. A corrupção no sistema de saúde e em outros setores da sociedade é também um reflexo da corrupção individual e vícios de cultura, que somados aos fatores de falta de transparência, controle e dificuldade de fiscalização e investigação, torna a punição uma consequência muito distante para os envolvidos, incentivando ainda mais desvios e saqueamento do sistema.

É vital portanto, e de extrema importância para a sociedade, uma mudança de cultura e reestruturação dos sistemas de controle, apuração e punição na área da saúde, em que a prática do compliance se torne imperativa para salvar vidas.

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[1] Disponível em https://pesquisa-eaesp.fgv.br/publicacoes/gvp/corrupcao-prejudica-saude-dos-brasileiros. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[2] Disponível em https://www.amg.org.br/amg_noticias/corrupcao-desvios-no-sus-somam-mais-de-r-45-bilhoes. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[3] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[4] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[5] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[6] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[7] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[8] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[9] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[10] Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-expoe-as-deficiencias-da-saude-publica-brasileira. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[11] Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-expoe-as-deficiencias-da-saude-publica-brasileira. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[12] Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2021-09/pf-deflagra-operacao-que-mira-corrupcao-em-compra-de-testes-rapidos. Acesso em 10 de setembro de 2021.

[13] Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/view/7935/6512. Acesso em 10 de setembro de 2021.

Referências

AFP. Pandemia expõe as deficiências da saúde pública brasileira. Istoé Dinheiro, 3 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-expoe-as-deficiencias-da-saude-publica-brasileira/. Acesso em 10 de setembro de 2021.

ALBUQUERQUE, Aline e DE SOUZA, Camila Nascimento. Corrupção na saúde no Brasil: reflexão à luz da abordagem baseada nos Direitos Humanos. Revista Brasileira de Bioética, Periódicos UNB, 2017. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/view/7935/6512. Acesso em 10 de setembro de 2021.

ALBUQUERQUE, Beatriz. PF deflagra operação que mira corrupção na compra de testes rápidos. Agência Brasil EBC, Brasília, 9 de setembro de 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2021-09/pf-deflagra-operacao-que-mira-corrupcao-em-compra-de-testes-rapidos. Acesso em 10 de setembro de 2021.

ASSOCIAÇÃO MÉDICA DE GOIÁS. Corrupção: desvios no SUS somam mais de R$ 4,5 bilhões. Disponível em: https://www.amg.org.br/amg_noticias/corrupcao-desvios-no-sus-somam-mais-de-r-45-bilhoes/. Acesso em 10 de setembro de 2021.

BIDERMAN, Ciro e AVELINO FILHO, George. A doença da corrupção: o desvio de fundos e a saúde pública nos municípios brasileiros. FGV EAESP Pesquisa, 2013. Disponível em: https://pesquisa-eaesp.fgv.br/publicacoes/gvp/corrupcao-prejudica-saude-dos-brasileiros. Acesso em 10 de setembro de 2021.

COELHO, Henrique e BRITO, Carlos. Esquemas de corrupção desviaram quase R$1,8 bilhão da Saúde do RJ desde 2007; valor supera gastos com a pandemia. G1, Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/29/esquemas-de-corrupcao-desviaram-quase-r-18-bilhao-da-saude-do-rj-desde-2007-valor-supera-gastos-com-a-pandemia.ghtml. Acesso em 10 de setembro de 2021.

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