A relação entre cultura e legislação

Cultura

Sempre que coloco as leis e as normas como pauta de um debate, muitas pessoas torcem o nariz. Isso ocorre porque elas veem o conjunto de regras apenas pela perspectiva jurídica ou como a maneira mais rápida do Estado controlar os cidadãos. Entretanto, é importante dizer que a legislação tem outra característica, por vezes esquecida ou até mesmo subvalorizada. Ela serve também como importante catalizador de mudanças de cultura. Através das imposições e orientações governamentais, a população ganha e reforça hábitos, comportamentos, valores e crenças.

Vamos aos exemplos. Em junho de 2024, completou-se 15 anos da Lei Antifumo Paulista (Lei n° 13.541/2009). Assim, se tornou proibido fumar cigarros, charutos, cachimbos, narguilés e outros produtos derivados do tabaco em locais fechados no Estado de São Paulo. A ideia era preservar o direito dos não-fumantes. Eles não precisariam mais inalar a fumaça lançada pelos fumantes. A norma estadual deu tão certo que influenciou o governo federal a estender as diretrizes para o país inteiro. Isso ocorreu cinco anos mais tarde, através do Decreto nº 8.262/2014. Desde então, os brasileiros não podem fumar em locais fechados.

Hoje parece um absurdo imaginar que há alguns anos era comum os alunos e os professores fumarem dentro das salas das faculdades. Quando fiz graduação, isso era extremamente rotineiro. Você ia no restaurante ou no barzinho e os clientes acendiam cigarros sem qualquer preocupação com os demais frequentadores. Ninguém parava para pensar se o ambiente era aberto ou fechado. Quantas vezes fiz refeições sob a névoa das mesas ao lado.

Repare que nesse caso, a legislação teve um caráter didático. A sociedade só pôde perceber o quão errado era aquele comportamento quando se passou a proibi-lo. Atualmente, até mesmo os fumantes enxergam benefícios na lei. Eles já incorporaram os novos hábitos e se sentem mal só de imaginar acendendo um cigarro em ambientes fechados. Percebo que amigos e parentes que ainda fumam não o fazem, por exemplo, na própria casa ou na casa alheia. Por quê? Porque entenderam que é errado incomodar os outros com seus hábitos. Fumar tudo bem, desde que no devido lugar.

A mesma dinâmica ocorreu quando, em 1997, foi instituída a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança no trânsito no Brasil. Até então, eram poucos os motoristas e os passageiros que usavam rotineiramente o equipamento. Passadas quase três décadas da entrada da lei, vejo que a maioria das pessoas coloca naturalmente o cinto de segurança quando entra no carro. Por quê? Porque virou um hábito e porque entenderam que essa é uma medida de segurança para elas. Curiosamente, alguns até se esquecem que se trata de algo obrigatório e passível de multa se não for utilizado. 

Mais recentemente, tivemos uma enorme conscientização da população brasileira a respeito do racismo e da injúria racial. Quanto mais e mais pessoas passaram a ser presas e a responder na Justiça pelo crime de preconceito aos negros, a sociedade como um todo compreendeu o quão errados eram determinados comportamentos que estavam sendo praticados com certa normalidade por muita gente.

Esses três casos são ótimos exemplos de como as leis bem-feitas e devidamente colocadas em prática podem ajudar o país e os cidadãos a evoluírem em termos de valores. A cultura molda a legislação, mas a legislação também pode moldar a cultura de um povo. Existem as duas vias.

Notamos isso com mais clareza quando viajamos para o exterior. Em alguns países, é proibido consumir bebida alcoólica nas ruas. Por quê? Porque esse é um comportamento que aquela sociedade não vê com bons olhos e decidiu desestimulá-lo. Até a venda desse tipo de produto possui regras específicas. Há lugares em que não se comercializa, por exemplo, cerveja e vinho nos supermercados. Para comprá-los, o consumidor precisa ir em um estabelecimento específico. Em outras nações, há regras de horários para a compra desses itens. A partir de determinado horário, os varejistas não podem vender produtos alcoólicos (apenas os bares têm esse direito).

No caso do racismo, notamos esse progresso cultural justamente quando ficamos indignados com os gestos preconceituosos de alguns estrangeiros em nosso país ou no exterior. Tenho um amigo que mora fora do Brasil há mais de um ano e está inconformado com a normalidade com que as injúrias raciais são proferidas no dia a dia – lá não é crime esse tipo de atitude. E olha que ele é branco. Por mais que se revolte, ele não pode fazer nada contra os racistas.

É verdade que há leis que são um verdadeiro retrocesso civilizatório. Nos últimos meses, nos deparamos com algumas no noticiário nacional. Por isso, devemos ficar de olhos abertos no que os representantes do legislativo estão confabulando. O Brasil é conhecido como o lugar onde “as leis pegam” e onde “as leis não pegam”.  Essa é uma curiosa particularidade da nossa sociedade, que atira no colo da população o poder de aprovar ou desaprovar as regras estabelecidas pelos governantes. De qualquer maneira, vamos pressionar para que a legislação caminhe sempre para frente e nunca para trás.

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Denise Debiasi é CEO da Bi2 Partners, reconhecida pela expertise e reputação de seus profissionais nas áreas de investigações globais e inteligência estratégica, governança e finanças corporativas, conformidade com leis nacionais e internacionais de combate à corrupção, antissuborno e antilavagem de dinheiro, arbitragem e suporte a litígios, entre outros serviços de primeira importância em mercados emergentes.

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